quinta-feira, 29 de outubro de 2009


O Arte, Memória e Oralidade é um espaço de criação que tem como inspiradores a literatura de cordel ou literatura de folhetos, as histórias da tradição oral, a memória etc.

A idéia de criá-lo surgiu a partir da pesquisa que estou desenvolvendo - fianciada pela Fapesp - acerca das maneiras como são narradas as ações e representações de Lampião na “Literatura de Cordel” e nas falas de cordelistas contemporâneos que abordam esse tema do Cangaço.

Investigo as ressignificações das interpretações sobre essa figura histórica nas narrativas de Costa Senna, Klévisson Viana, Manoel Monteiro, Moreira de Acopiara e Varneci Nascimento. Além de buscar perceber como estes se posicionam diante de outros cordéis consagrados nessa temática.

Acredito que o conteúdo informativo, educativo, político e social que permeia os folhetos pode ajudar na construção de concepções sobre essa personagem ambígua e sobre o meio em que ele desenvolveu ou deu sentido à sua ação.

Parto do pressuposto que o cordel além de possibilitar um tipo de conhecimento, tecido no cotidiano do poeta que o compõe, permite a interação de múltiplos saberes populares; saberes que ultrapassam determinadas classes sociais.

Assim, esse gênero literário de poesia popular impressa, a oralidade e a memória constituem-se em fronteiras simbólicas entre o passado e o presente, entre a tradição e a modernidade, entre o antigo e o novo que possibilitam pensar inúmeras questões contemporâneas. Busco, portanto, com esse blog criar um ambiente de discussão em torno desses três elementos: a arte popular, a memória e a oralidade.
LAMPIÃO NO IMAGINÁRIO FRONTEIRIÇO DA “LITERATURA DE CORDEL” CONTEMPORÂNEA

“(...) a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente (Martin Heidegger)

Esse artigo é fruto de uma pesquisa que estou desenvolvendo - financiada pela Fapesp; analiso a maneira como são narradas as ações e representações de Lampião nos versos e nas falas de cordelistas contemporâneos que vivem na fronteira Nordeste/Sudeste; cordelistas nordestinos radicados em São Paulo e outros residentes em Fortaleza – CE e Campina Grande – PB, mas que mantêm uma forte relação com os que vivem em São Paulo. Busco, portanto, realizar uma leitura das expressões metafóricas do Cordel, articulando-as com as discussões clássicas sobre o Cangaço e Lampião. Para essa análise, selecionei alguns cordéis:
ACOPIARA, Moreira de. Lampião e Padre Cícero num debate inteligente (2003); De Virgulino a Lampião – O Cordel (2004); Lampião Absolvido (2004); O lado bom do Nordeste (2004); Mote: valente foi Virgulino covarde foi Lampião – junto com Jonas Bezerra (2004).
MONTEIRO, Manoel. Lampião: “... era o cavalo do tempo atrás da besta da vida” (2002); O vingador da honra (2003).
NASCIMENTO, Varneci Santos do. Visita de Lampião a Padre Cícero no Céu (2004); Cangaço: um movimento social (2006).
SENNA, Costa. Lampíão e seu Escudo Invisível (2009); As Lágrimas de Lampião – no “prelo”; Lampião 20 anos de Guerra – no “prelo”; Luiz Pedro e Lampião até a última Batalha – no “prelo”.
VIANA, Klévisson. O Cangaceiro do Futuro e o jumento espacial – Ficção científica em cordel (2008); História completa de Lampião e Maria Bonita – junto com Rouxinol.
Nesses cordéis busco perceber os sentidos, metáforas e significações (re)construídas de Lampião na tentativa de compreender o processo de construção das narrativas, imagens, metáforas, conferidas a Lampião no contexto de escrita desses cordéis, como também traçar a rede de significações que é construída em torno do Cangaço de Lampião. Para isso, faz-se necessário entender a formas de narrar, as polaridades construídas, as imagens elaboradas e reelaboradas de Lampião por esses cordelistas contemporâneos que se dedicaram a esse “ciclo temático” do Cangaço. Além de tentar perceber na vida cotidiana dos cordelistas como o contexto urbano interfere e determina as suas construções métricas e a maneira como elaboram as narrativas sobre o tempo de Lampião.
Essa pesquisa está dividida metodologicamente em três momentos que correspondem apenas a estratégias de ação e não a uma divisão estática e fixa:
1º momento: Pesquisa bibliográfica
Essa parte da investigação eu iniciei muito antes de começar a escrever o projeto, haja vista essa temática me causa admiração e indagações desde a minha adolescência. Nessa parte da pesquisa, investigo livros clássicos e contemporâneos sobre o Cangaço e sobre a literatura de cordel e as leituras específicas sobre o Cangaço em cordel. Trata-se de uma aproximação das discussões clássicas da história de Lampião, das últimas quatro décadas, tais como podem ser encontradas em Rui Facó (1965), Maria Isaura Pereira de Queiroz (1970; 1975), José Lins do Rego (1970), Aglae Lima de Oliveira (1970), Eric Hobsbawm (1971), Frederico Pernambucano de Mello (1974), Câmara Cascudo ([1939]1984), Élise Grunspan-Jasmin (2001), Moacir Assunção (2007). Depois analiso as fontes primárias que se tratam dos cordéis escritos pelos poetas abordados nessa pesquisa – Moreira de Acopiara, Costa Senna, Varneci Nascimento, Klévisson Viana e Manoel Monteiro.

2º momento: Pesquisa em jornais, Internet, folhetins, lugares de exposições e lançamentos, eventos sobre o cordel e áreas afins – Caravana do Cordel, Congresso de Cantadores de Viola etc.
Essa segunda abordagem da minha análise trata-se de pesquisar a presença e atualidade da Literatura de Cordel em São Paulo e no Nordeste. Além disso, perceber como as narrativas contemporâneas sobre o Cangaço de Lampião estão relacionadas com o cotidiano dos cordelistas e qual o espaço desse tema predominantemente rural, em um contexto totalmente urbano e/ou metropolitano. É provável que essa liberdade em falar do assunto se dê pela forte presença dessa fronteira na vida cotidiana desses cordelistas.

3º momento: Entrevistas
As entrevistas com os cordelistas citados têm por objetivo abordar seus universos temáticos de criação, a especificidade da temática do Cangaço de Lampião e o porquê de continuarem tematizando essa personagem ambígua, além de buscar perceber como se distanciam e se aproximam de outras interpretações. As entrevistas que tenho feito também são importantes em minha pesquisa para o mapeamento dos percursos migratórios e das redes existentes entre esses cordelistas na fronteira Nordeste/Sudeste. As construções cordelistas sobre Lampião se dão nas fronteiras simbólicas e geográficas dos universos rural/urbano e nordeste/sudeste.
Na literatura de cordel sobre Lampião é possível inferir que espaço (rural e urbano) e tempo (passado e presente) se encontram para produzir complexos metafóricos tanto de diferenças quanto de identidades. Parece existir nesses versos uma necessidade de ultrapassar as próprias narrativas, ao mesmo tempo em que se detém nas fronteiras das diferenças culturais, nas fronteiras entre o eu e o Outro, entre a subjetividade individual e a coletividade.

Acredito que eles tentam, por vezes, abolir (pelo menos simbolicamente) o tempo, saindo de seu próprio tempo individual, cronológico, “histórico” e se projetando em um instante que não pode ser medido por não ser constituído por uma duração. Isso está muito presente nos versos de Klévisson, por exemplo, que constrói uma narração sobre Lampião, pautada em uma ficção científica. Com isso, vejo que por meio da reatualização e “mitificação” de acontecimentos passados, esses cordelistas tecem seus versos em fronteiras simbólicas entre a tradição e o moderno; entre o passado e o presente; entre o atemporal e o tempo medido; entre o profano e o sagrado; entre o céu e o inferno.

As imagens narradas de Lampião são construídas com a maior das naturalidades; são uma construção verbal ou representacional que demonstram não só elementos do imaginário coletivo, mas principalmente do imaginário individual de quem escreve. As imagens de Lampião são construídas a partir de arbitrariedades do sistema de classificação dos cordelistas, a partir de seus contextos sociais de construção. A partir das várias leituras dos folhetos dos cordelistas analisados e de entrevistas a esses poetas, percebi que os atos de nomeação, as reivindicações de classificação da imagem de Lampião, geram novas imagens, novas faces dessa personagem paradoxal.

Lampião preocupou-se em construir, propagar e controlar uma imagem específica de si mesmo, porém não conseguiu. À medida que ele tentava elaborar essa imagem, tornava-se objeto de representações múltiplas que se davam em um jogo de imagens contraditórias. Isso provavelmente porque os seus feitos encontravam eco no imaginário de sua época – perceptível até hoje –, suscitando uma variedade de interpretações e representações sobre ele. Nas palavras de Costa Senna, essas imagens que foram (e são) construídas não refletem a realidade, ajudam ao contrário, a instituir sobre Lampião uma idealização ou ficção social. Isso talvez aconteça porque os cordelistas através de seus versos constroem suas narrações à imagem do que vêem e do como representam a realidade. Assim como o pensamento mítico, esses poetas utilizam-se de imagens tiradas da experiência.

Eles demonstram Lampião como um homem suscetível de ser usado como um operador binário – herói/bandido, céu/inferno, vida/morte etc – e que pode sugerir uma relação com um problema que também é um problema binário (LÉVI-STRAUSS, 2007: 33-34). As narrativas cordelistas, portanto, tendem a produzir visões dicotômicas de Lampião. Desse modo, constroem polaridades como separações e não como travessia; é provável que a percepção dos interstícios, das ambigüidades dessas imagens possa ser construída, a partir do cruzamento das diferentes concepções sobre Lampião que possibilitam a observação do “e” – ladrão e justiceiro, bandido e herói – e não do “ou” ladrão ou justiceiro, bandido ou herói.

Os usos, em minha pesquisa, dos conceitos de fronteira, liminaridade, fluxos consistem na tentativa de pensar nos vários fenômenos de deslocamentos, como é o próprio cordel sobre Lampião que está em um constante movimento do Nordeste para São Paulo e de São Paulo para o Nordeste. A noção de fronteira é primordial, haja vista que utilizo esse conceito em duas dimensões:
- Lampião como homem de fronteira no eterno movimento do seu bando, entre o legal e o ilegal, o heróico e o banditismo. Essa figura histórica extrapola ética, legal e violentamente as fronteiras, embora as simbolize e as determine em aspectos valorativos.
- Idéia de migração de pessoas, autores, idéias e valores, relacionada aos fluxos fronteiriços, migratórios que possibilitam ver a cultura como algo em constante movimento, embora suas formas significativas possam tornar-se duradouras.

As memórias narradas pelos poetas apresentam geralmente os sentimentos de mudança e permanência dos cordelistas em relação ao Sertão e ao Cangaço. Estas narrativas – em consonância com Todorov – apresentam uma tensão de duas forças: a mudança e ordem, não obedecendo a uma força especificamente, mas se constituindo na tensão entre as duas. No plano das narrativas sobre Lampião, o conflito é uma questão central para indicar as diferentes visões de mundo que acontecem simultaneamente e que são contraditórias dentro da construção das imagens de Lampião pelos cordelistas, como também as disputas de classificação e de memória legítima da vida de Lampião. Há nestes folhetos, a narração dos conflitos entre Lampião e seus adversários e as disputas no plano da interpretação de Lampião que põem à vista as oposições entre os próprios cordelistas.

(...) você vai tremer nas bases ao ver o trabalho que tenho para publicar sobre Lampião. Esse trabalho é resultado de uma pesquisa minuciosa que fiz nas fontes históricas e jornalísticas da época que quiseram criar um bandido e não fatos a partir da realidade. Fizeram com Lampião o mesmo que fizeram com os judeus (...). Hoje em dia não faz sentido falar de Lampião como bandido; apenas como cangaceiro; é o que ele é. O meu trabalho é uma tentativa de mostrar as coisas como elas realmente aconteceram (SENNA, Costa. Entrevista realizada, em maio de 2009, em São Paulo).

(...) Ele era bandido. Desperta tanto fascínio, mais, eu acho, por causa da mídia. Eu gosto da história dele; porque naquela época era tudo muito difícil (...). E ele sobreviver, andando a pé, enganando a polícia, corrompendo a polícia, (...) levando tiro, reinando por quase vinte anos (...). É herói por causa disso, mas foi bandido, sanguinolento. É admirado por ser inovador, inteligente, poeta, costureiro, cozinheiro (...) desperta atenção por ter enganado e se saído bem por quase vinte anos (ACOPIARA, Moreira de. Em entrevista, realizada no dia 2 de maio de 2009, em São Paulo).